sexta-feira, 22 de julho de 2011

Gabriel


Gabriel

Ele parou em frente à porta antes de entrar. Pensou em desistir daquilo. Tinha de se afastar de vez desse lugar, não podia continuar indo ali, aquilo só o machucava mais e mais. Só que era mais forte do que ele. Não conseguia resistir, sentia a saudade o consumir no peito.

Olhou pela janelinha de vidro o interior do quarto. O homem ainda estava lá, deitado em seu leito. Com um lençol azul cobrindo o corpo e fios que o ligavam a soro e máquinas. Girou a maçaneta e abriu a porta. Lembrou de quando não precisava fazer isso.

Entrou lentamente, deixando a porta encostada. O quarto estava mergulhado no silêncio. Somente o som do aparelho dava vida ao lugar. Aquele “bipe” monótono já se tornava habitual depois de tantas visitas.

Procurou uma cadeira que estava próxima a cama. Sentou e passou a observar aquele homem deitado, adormecido. O homem tinha o rosto cansado, dormia, mas não estava bem. Era jovem o rapaz, não devia ter completado seus trinta anos. Mas estava morrendo, vítima de um câncer no intestino.

Descobriu a doença tarde demais. Os médicos ainda tentaram, passou por duas cirurgias, foi mutilado, definhou, teve esperança, mas não teve jeito. O tumor sempre voltava em outro lugar. Sua expressão enquanto dormia era de uma pessoa que tentava se agarrar de todas as formas a vida. Mas a vida o abandonava minuto a minuto.

Sentado ao lado da cama o homem de casaco escuro esperava. Esperava não pela recuperação do homem, aquele pobre já não tinha jeito. Esperava pelo que vinha depois. Quando o último suspiro abandonasse aquele corpo. Quando a luz viesse buscar a alma daquele pobre mortal.

Sabia que a hora estava chegando. Sentia a passagem se aproximar como quem sente um perfume de uma rosa. Rosa não, lembrava mais outra coisa, Jasmim, talvez.

Um bip mais alto que o de costume veio do aparelho ao lado da cama. Depois outro. E mais outro. Ia ser agora. O aparelho disparou uma metralhadora de sons, pequenas luzes se acenderam. O homem deitado se estrebuchou por um segundo. Inflou o peito duas vezes e na terceira parou. Soltou o ar que restava no corpo deixando a cabeça pender um pouco pro lado. Uma linha corria solitária no monitor do aparelho. Um bip só, contínuo. Um bip e nada mais.

Em dez segundos uma enfermeira entraria no quarto. Levantou-se da cadeira e postou-se ao lado da cama. Com a mão direita segurou uma das mãos do homem desfalecido e a esquerda pousou no peito sem vida, onde ficava o coração. Fechou os olhos.

O silêncio. O tempo não mais existia. Não estava mais num quarto de hospital. Não tinha mãos, braços, um corpo. Um segundo interminável. Abriu os olhos novamente.

E então fez-se a luz. Cegante, absoluta. Aos poucos foi abrandando. Tinha corpo mais uma vez. Seus olhos já conheciam aquele lugar. Eles chamavam de O Grande Corredor Branco. Na verdade não havia nada, era tudo um branco completo. Um lugar vazio. Mas era ali que recebiam os que despertavam.

Uma nova luz começou a brotar num ponto no horizonte. Meio tímida, foi se aproximando lentamente, tomando forma. A esfera de luz parou um pouco a frente. Foi crescendo, tornou-se gelatinosa, reluzente. A massa brilhante tomou a forma de um homem, alto, robusto. Quando todas as suas feições ficaram sólidas ele abriu a boca e falou.

- Irmão, o que faz aqui?

O som de uma voz conhecida fez lágrimas brotarem nos olhos.

- Azazel, eu imploro, me deixe ir até Ele. Eu não O escuto mais, Ele não me deixa voltar. Até quando, Azazel, até quando?

Baixou a cabeça sentindo o peito apertar. Já podia sentir o cheiro dos campos ao longe, ouvir o canto dos pássaros. Um aperto no peito, mais lágrimas. Azazel estava descalço, vestia uma túnica azul celeste. Olhou com expressão triste para os olhos marejados a sua frente..

- Não posso interceder na sua jornada, irmão, você sabe. Se você ainda não voltou é porque ainda tem algo a desempenhar no plano físico. E se Ele não mais responde as suas preces, deve ser porque queira que você busque as respostas sozinho.

As palavras de Azazel soavam lentas e de maneira suave. Ao mesmo tempo em que acalmavam elas traziam tristeza. Sentiu uma mão tocar seu ombro, vinda por trás. Virou-se, era o homem que acabara de morrer naquela cama de hospital. Ele vinha a passos lentos, olhos arregalados, assustado.

- Deixe-o o passar, Gabriel. Não mais incomode esta pobre alma. Precisamos atravessar o corredor, deixe-nos ir.

Gabriel deu passagem a nova alma. Olhou uma última vez Azazel nos olhos. Aqueles olhos tão serenos. Assentiu com a cabeça, deu dois passos para trás, vendo os dois à frente transformarem-se em dois pontos de luz, sumindo no horizonte infinito. Fechou os olhos outra vez.

Antes de abri-los novamente sentiu uma mão puxar seu braço com força. Os sons retornaram, o ar, o corpo. A enfermeira gritava ao seu ouvido - Senhor, senhor, precisa solta-lo. Senhor, o que está fazendo?

Tomou controle do seu corpo novamente no mesmo instante em que soltava a mão do homem morto. Afastou-se da cama, empurrando sem querer a mulher histérica ao seu lado.

- Senhor, o que estava fazendo, conhece este homem? Você é da família?

- Não, não, eu era só um amigo, me desculpe. Tenho que ir.

- Senhor, mas.. - Tentou a enfermeira em vão, enquanto o homem assustado saia apressado.

Gabriel tinha de sair dali, antes que chamasse mais atenção. Encontrou as escadas sem dificuldade. Saiu do hospital sem ter problemas. Sua Shadow 750 esperava parada do outro lado da rua. Tirou o capacete da trava, sentou, ligou a chave e saiu, deixando o som da motocicleta encher a noite.

Gabriel não tinha encontrado as respostas que queria, ainda, mas alguma coisa o incentivava a continuar. Tinha de seguir com sua jornada. Se estava certo ou não, não sabia. Mas continuaria sendo a sombra que cruzava o caminho dos homens.

Aquele que cobrava. Aquele que dava o castigo. Gabriel era um anjo, sim, mas não era daqueles que vinham com sorrisos e harpas. Gabriel era um vingador. E se sua missão era permanecer na Terra, que assim seja. Continuaria agitando as noites da velha Salvador. Ao seu modo. Ceifando o mal por onde passasse. E a noite, a noite estava só começando..

Continua..

Gabriel Ferrari.

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